sexta-feira, 15 de maio de 2020

transcrições de um retorno.

eu ensaiei um retorno durante esses anos, mas o hiato falou mais forte: outras vozes.
nesse mês, durante sete dias, participei de uma oficina remota, um desafio de escrita criativa, proposto pela andréia pires (em tempos de redes sociais, o arroba dela é: @andreiapiress).
transcrevo, aqui, minhas produções. como recuerdos.

01 | ponto de partida

acho que foi em 2008, quando coletivamente montava e apresentava uma peça (caro destinatário) - a primeira que eu participava, conscientemente -, que alguém soltou a frase “definir é limitar” no roteiro. na época, eu escrevia bastante, mantinha um blog. disse que adotei a frase pra mim “e, desde então, perco-me em minhas próprias bordas invisíveis”. um barquinho vermelho navegando num mar negro, de bordas infinitas.
não sei dizer em que medida mudei ou sou mais ou menos o mesmo (a mesma carne e batatas, carne e osso, pão com ovo), mas acho que a magia da frase anda por aí. olhar pra si mesmo numa perspectiva externa é bem difícil. e tudo que me atravessa (pode) muda(r) de direção, intensidade, tempo, espaço, e momento. as constâncias são as listas de três, as minúsculas, e as metáforas. escrevia bastante essas últimas. parei de escrever porque. parei de escrever por quê?

02 | o todo e a parte

na época do fotolog, lembro que fiz uma série “pedaços do corpo”, fotografias em p&b (acho que sempre vou buscar um pedaço do passado pra tentar compreender o presente). dedos, cotovelo, calcanhar, cabelos - que eram longos na época -. não tenho certeza se cheguei a subir as fotos na plataforma, mas ainda tenho uma pasta no computador. nada de mais - ou: deus me acuda -.
mas o que de mais me lembro é de um momento, na vida, ter me olhado no espelho, me indagando sobre a “corrência” (neologismo pro que corre) no mundo sobre beleza, auto-apreciação, e o outro (enquanto entidade, que se usa maiúscula pra evidenciar, mas, aqui, não). não foi exercício tão profundo assim, mas essas questões não me recortavam à época. acho que ainda não recortam. pelo menos não dessa forma mais corriqueira do desejo. lembro que me vi como neutro. nem pela ótica da feiúra nem da beleza. ou o assunto não me importava, absolutamente.
mas um fascínio tinha: a nuca. a nuca nu(n)ca nu(c)a. uma foto em que a expunha, puxando os cabelos, causando nervoso em quem deu o clique pra ver. um parte do corpo em que nós, enquanto autor_s, só temos acesso pelo intermédio do outro, mesmo que o outro seja esse nós refletido no espelho. a nuca talvez seja minha simbologia para entender que o acesso a nós mesmos se dá pela relação com o outro. esse outro outra outre no pico do out(r)ono.
ou talvez seja só porque se refere à metáfora da estalactite-estalagmite, vai saber.

03 | o corpo aconchega

dada sua importância, é estranho que eu me encontre nesse espaço tão pequeno. mas na primeira vez que estive aqui, tive de - pasmem - conter a lágrima. acho que era a emoção de uma casa de velhinho. coincidências do nome do neto, e uma sensação de chalé kitsch. me sinto confortável no afago do frio, mas ainda trabalho nas plantas, e os cacarecos conto em mais de dedos.
às vezes me falta espaço pra tanto que compilo: tempero, pó, vacilo. mas nada aquece mais os corações dos bichos do que um prato de afeto.

04 | um dia na tua vida

car_ destinatári_,
os dias tem se tornado cada vez mais frios, e as ventanias preenchem os espaços entre as janelas, entrando e rodopiando no ar até alcançar meus pés sem meias. não sei por que, mas não consigo dormir de meias.
a manhã vem e, quando consigo levantar cedo, a cabra com rabo de peixe vem no pé do meu ouvido me dizer de preencher o dia, criar uma rotina. o primeiro passo sempre dado: molhar as plantas. se a comida do gato já está na tigela, uns miados a menos - ou, às vezes, a mais, implorando por comida nova. o gato também me vem ao pé do ouvido, pedindo pra abrir a janela pra deixar encostar os mínimos raios de sol que entram nessa casacorredor.
a rotina tem se feito pela cozinha: café da manhã, almoço, janta. nenhuma refeição se pula, todas importantes - afinal, o taurino a tiracolo não deixaria. quando atrasa o acordar, se atrasa o horário. café da manhã não se pula, café da manhã não se pula, café da manhã não se pula. repete comigo.
esse enclausuramento não é novidade pra mim, então me sinto confortável, como o cobertor verde que abriga do vento que grita "não adianta se esconder" quando se fecha qualquer porta. talvez agora seja diferente, porque não vem com o peso da obrigação de existir no mundo, física e socialmente. mas mesmo assim, tenho me empenhado em (r)existir.
enquanto vejo as pessoas de máscara sem máscara fazer o sinal da cruz toda vez que passam pela sacada, tento entender o brasil, como participar na política ambiental do município, se mato é comida, quais as características sociambientais dessa cidade, como criar hortas em pequenos espaços, como biofortificar alimentos, que droga é essa, como entender lacan, entre tantos outros preenchimentos que, sem óculos, se lêem: privilégio.
eu sei. mas lacan não é fácil, e, portanto, freud fala. também falam marquês de sade, marilene carone e vladimir safatle. ouço as vozes de tatiana nascimento, ailton krenak, e ainda outras que, por ora, não reconheço na interlocução. mas sigo atento. seguimos tod_s atent_s, e a postos, pra saber se, no fim, não era tudo um sonho que se estendeu por dias a fio. que frio!

05 | do obsoleto

hoje me demoro. muito a gente carrega a tiracolo: vento, lenço, documento. penso no meu ir e vir. tanto tempo trilho o mesmo caminho. lugares diferentes, mas percurso simples. antes, via o mar. me acalmava antes de subir a ladeira da federação, meu bicho papão. o motorista no volante, mas eu quem segurava. hoje, mato, casa, estrada. um cheiro de cavalo bem no meio. no meio, também, uma parada de mel. quantas abelhas moram ali? são essas mesmas que entraram pela minha janela nos fins do verão? com cuidado, as retornei para fora, mas o que queriam me dizer? talvez nada. talvez flores. mas flores eu não carrego a tiracolo no meu ir e vir. se hoje vou e venho da cozinha ao banheiro à sala ao quarto à varanda à lavanderia em alguns metros quadrados, antes percorria quilômetros. nesses, meu maior medo era perder. o trauma foi há muito, mas superação não veio. perdi um botton azul, do radiohead. besteira. mas tinha um apelido que me relacionava a eles; besteira. tenteio voltar, um saquinho cheio que derramei num pote na porta pra saída de casa. prender na mochila, recuerdos de viaje. essa viagem que a vida é. nesse processo, dissequei o monte, num ascendente em virgem que não tenho (virgem é a mãe). um por um, cada possibilidade. ainda não contei; vou contar. quarenta e dois. mais um na mochila, guardada no armário, que ficou como recuerdo. quantos dias já se passaram? um por dia? talvez o exercício de desobsolecer grite dentro do pote.

06 | chega de saudade

pela coragem que só vem depois de alguns goles de vinho, escrevo essa carta aberta pelo que não conseguiria dizer no íntimo. aqui, tenho dificuldade à palavra, mesmo com tanto a dizer. tempo já passou, e algumas vezes tenteei escrever essa história, como uma outra num caderno azul perdido em outra cidade, mas achando que, pelo ato do não escrever, se instauraria um sinônimo de continuidade; uma história sem fim. lembro do chão sem o chão, do shopping sem o shopping, do show sem o show. sentados na calçada antes do aeroporto, três dias só de nossos (des)encontros, a festa lá fora, que nem como no carnaval, o fim de festa, quando nossos olhos se cruzaram na avenida, no avesso da alegria. meu fim, seu começo. de fato, como na mixtape que já gravei em minha cabeça, "que bom que a gente se perdeu". em paralelo, tomo os cafés enquanto observo, pelas janelas dos arranha-céus, fragmentos de sua felicidade. e, assim, fico passarinho-feliz.

07 | se fosse um bicho

zero, uma, duas, três, cinco, oito, treze, vinte e uma, trinta e quatro, cinquenta e cinco, oitenta e nove, cento e quarenta e quatro, duzentas e trinta e três, trezentas e setenta e sete, seiscentas e dez, novecentas e oitenta e sete, mil quinhentas e noventa e sete, duas mil quinhentas e oitenta e quatro... quantas voltas é possível dar em si mesm_?
bicho antigo, de voltas rígidas por sob a pressão das águas. viaja por aí há anos. longe dos humanos.
lá, inabitável, distante. aqui, uma xícara de café reconfortante. sonhamos com o que temos às mãos.


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