NOME próprio. como se não fôssemos expressão da mesma coisa boba que se chama: vida. os passeios no parque ibirapuera, aquela lembrança dos patos na beira. o abismo que é ser eu, mesmo que suassuna diga que ao redor do buraco tudo seja beira. ser não é o mesmo de estar, e freqüentemente me pergunto se a lasca na porta é matéria ou imaginação. antes de mim, muitos olharam e disseram "é: ". e fim, teve nome. mas já era coisa antes mesmo de ser vida. uma vida entregue nas mãos calejadas desse mundo. como quem chora com o som da cuíca, grito pro vazio e ele me responde em eco: "nonada". assim fico prostrado, e escrevo na parede da caverna com o carvão ativado que escorre da boca por conta da pasta que escovo os dentes: meu nome (não) é lucas.
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CIDADE-neblina, como espaço de traço na primeira janela que vi, às sete da manhã, sol nascendo na beira da laguna. tenho como papel dobrado sete vezes e guardado no bolso perto do peito o poema de kaváfis, como quem ouve sussurros quando margeia as praças e fotografa o farfalhar das pombas. se faço voltas pelo centro histórico, conheço um campo de areia compactada que questiona o que é real e o que é aterro. essa cidade-ilha, que se expande ao invés de submergir, fica no caminho da água, mas não é engolida pela baleia. se antes, na cidade quebrada em duas partes, o mar era tropeço no caminho da visão da janela, aqui é busca, correr atrás, como correm as pequenas serpentes batendo no vidro a madrugada inteira. inteiro o meu coração (ainda). talvez um dente podre, a cárie que só verei depois dos trinta. trinta vezes três vezes vinte e dois: há quantos dias eu piso nesse chão que ora é lama, ora é poça? não sei. sei: mesmo com as turbulências, ciclones, e ondas de mais de cinco metros, continuo nesse canal além das cem milhas náuticas.
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COR que é conjunto na prática, mas não em teoria. quando os potes de tinta se misturam nas mãos da criança-como-espírito, não é luz que se forma, mas penumbra, como falta de. uma coesão triangular, que inflama nos olhos, e causa suspiro na alma. harmonização de tons, as flores murchas, os retratos em p&b: tudo isso é expressão da cacofonia, que, ao contrário do que o homem de chapéu definiu, não é desarmônica. se o fundo em pastel é visão, preto vem como escolha. como quando se aperta a espinha e o que sai não é impureza, mas sangue. assopro os óculos como quem acha que o vento afasta a poeira, mas a cor é incrustada. e se a onda quebra nas pedras do cais, a lama oxidada que fica é resquício do caminho trilhado antes de mim, como gato na caixa, e tinta de esmalte que não sai completamente.
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OBJETO inanimado que grita vida a plenos pulmões. há duzentas e quarenta e quatro postagens atrás (ou quarenta e sete de trás pra frente, do começo ao fim-presente), eu te exercitava. em página azul e espaços a preencher, linhas tortas completas de azul. livro que se auto-escreve, página por página, até o fim do papel. lento, sóbrio, pacífico: como pinga-pinga do oceano no teto transparente da casa de vidro em que morei. janela aberta, fresta de ser. se pego o gato pelo pescoço, é porque aprendi contigo. e hoje passo o dedo nas linhas, sentindo a textura, como quem lê em braile. as flores murchas continuam a sugar a água, e, aos poucos, livro se encaminha para a última página, onde, sem mais delongas, se escreve, em letras garrafais: FIM. mas até lá, refaço em papel-cartão, sem tirar nem pôr, o que te preenchi em setembro de dois mil e catorze.
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ANIMAL que habita em mim saúda animal que habita em ti. a vontade de alteridade é grande, mas, no fim, somos sempre nós mesmos, mutantes. se quero ser bicho, continuo sendo humano, pois mesmo debaixo de tanta pressão na fossa das marianas, alguém grita que não consegue respirar. e é bicho, bicha, biche. cada um com seu recorte, sejam particularidades ou farpas, cacos de vidro ou pedaços flutuantes de madeira mesmo. um soco na cara, outro no estômago: isso que dá ser biche hoje em dia, como sempre foi - olho roxo. desde que o mundo estourou da bolha, partículas vagueiam como poeira possível de existir. se dormimos, é porque precisamos dar um tempo. pausa para o fim do mundo, enquanto os gatos saem à noite e festejam depois da própria festa. as ruínas se reconstroem enquanto sonhamos com outros, e, como disse letícia, "todo noite eu arranco o meu coração; de manhã, ele volta a crescer".
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COMIDA é assunto delicado. não tenho touro no sol, nem ascendente. todas minhas terras são outras. pego o que está ao alcance da mão: afeto se faz com o que se tem. no parque, aquele sanduíche simples de carrinho, alface tomate queijo, é memória de gosto bom. em casa, capricho no bolo de aniversário, três dias em construção para que nada desmorone e, mesmo assim, permaneça macio. sim, é facilidade. mas também é trabalho, também é afeto, também é alimento. podia falar do tempo lento da fermentação, da cenoura que se restaura de murcha a firme se submersa em água. mas vai além. também é política. são seis garrafas de refrigerante que eu vejo no carrinho da frente, o queijo que vicia, o iogurte que tem mais seis, sete ingredientes além do básico. é memória antiga, como torta petróleo, nome estranho, mas que suscita sabor na boca; é memória recente, como o feijão com arroz couve e batata do almoço de hoje. memória vai além do macaron, café da tarde que não pulo (basicamente, não pulo café, pra ser mais explícito), gourmetização colonial exportada para o brasil como iguaria, chegando úmida, murcha, sem sabor nem pimenta. memória & afeto é cuscuz & café quente.
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FILME em preto e branco, como não canta o celacanto. acho que é mão enfiada no saco de grãos e cereais, talvez os morangos - porque são bem mais baratos aqui nos baixos trópicos - enfileirados nos dedos. a presença mais forte não é do crème brûlée, mas do parque de (d)(i)(n)(versões). misturo os versos, deixo colorir apenas as partes vermelhas e verdes, mesmo que deteste natal. mas a cor das pimentas, o cheiro assimétrico do açúcar que se inverte e queima, e que tem nome de cientista francês, é mais forte que o desamor. não é carne, mas é animal. como gato que brinca com as miçangas presas já que não há possibilidade de porta. me fecho, no aquário de vidro, e o que passa na televisão talvez não seja esse filme. frágil demais pra entender, busco os óculos e não vejo mais em colorido. é um momento. talvez eu mude a fita; os computadores hoje em dia nem tem mais leitor de cd. espero o dia que seja possível voltar no tempo. como filme noir que paira no ar o estouro da bala. minha vida não tem drama, e, por privilégio, nem bala perdida. todas são certeiras, e atingem meu coração diariamente. eu nasço eu morro. tiro de letra. como rio que não banha os mesmos pés mais de uma vez. e corro pro mar, no fim que chegou...
agora.