segunda-feira, 10 de agosto de 2020

na minha terra, isso se chama salada de frutas.

NOME próprio. como se não fôssemos expressão da mesma coisa boba que se chama: vida. os passeios no parque ibirapuera, aquela lembrança dos patos na beira. o abismo que é ser eu, mesmo que suassuna diga que ao redor do buraco tudo seja beira. ser não é o mesmo de estar, e freqüentemente me pergunto se a lasca na porta é matéria ou imaginação. antes de mim, muitos olharam e disseram "é: ". e fim, teve nome. mas já era coisa antes mesmo de ser vida. uma vida entregue nas mãos calejadas desse mundo. como quem chora com o som da cuíca, grito pro vazio e ele me responde em eco: "nonada". assim fico prostrado, e escrevo na parede da caverna com o carvão ativado que escorre da boca por conta da pasta que escovo os dentes: meu nome (não) é lucas.

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CIDADE-neblina, como espaço de traço na primeira janela que vi, às sete da manhã, sol nascendo na beira da laguna. tenho como papel dobrado sete vezes e guardado no bolso perto do peito o poema de kaváfis, como quem ouve sussurros quando margeia as praças e fotografa o farfalhar das pombas. se faço voltas pelo centro histórico, conheço um campo de areia compactada que questiona o que é real e o que é aterro. essa cidade-ilha, que se expande ao invés de submergir, fica no caminho da água, mas não é engolida pela baleia. se antes, na cidade quebrada em duas partes, o mar era tropeço no caminho da visão da janela, aqui é busca, correr atrás, como correm as pequenas serpentes batendo no vidro a madrugada inteira. inteiro o meu coração (ainda). talvez um dente podre, a cárie que só verei depois dos trinta. trinta vezes três vezes vinte e dois: há quantos dias eu piso nesse chão que ora é lama, ora é poça? não sei. sei: mesmo com as turbulências, ciclones, e ondas de mais de cinco metros, continuo nesse canal além das cem milhas náuticas.

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COR que é conjunto na prática, mas não em teoria. quando os potes de tinta se misturam nas mãos da criança-como-espírito, não é luz que se forma, mas penumbra, como falta de. uma coesão triangular, que inflama nos olhos, e causa suspiro na alma. harmonização de tons, as flores murchas, os retratos em p&b: tudo isso é expressão da cacofonia, que, ao contrário do que o homem de chapéu definiu, não é desarmônica. se o fundo em pastel é visão, preto vem como escolha. como quando se aperta a espinha e o que sai não é impureza, mas sangue. assopro os óculos como quem acha que o vento afasta a poeira, mas a cor é incrustada. e se a onda quebra nas pedras do cais, a lama oxidada que fica é resquício do caminho trilhado antes de mim, como gato na caixa, e tinta de esmalte que não sai completamente.

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OBJETO inanimado que grita vida a plenos pulmões. há duzentas e quarenta e quatro postagens atrás (ou quarenta e sete de trás pra frente, do começo ao fim-presente), eu te exercitava. em página azul e espaços a preencher, linhas tortas completas de azul. livro que se auto-escreve, página por página, até o fim do papel. lento, sóbrio, pacífico: como pinga-pinga do oceano no teto transparente da casa de vidro em que morei. janela aberta, fresta de ser. se pego o gato pelo pescoço, é porque aprendi contigo. e hoje passo o dedo nas linhas, sentindo a textura, como quem lê em braile. as flores murchas continuam a sugar a água, e, aos poucos, livro se encaminha para a última página, onde, sem mais delongas, se escreve, em letras garrafais: FIM. mas até lá, refaço em papel-cartão, sem tirar nem pôr, o que te preenchi em setembro de dois mil e catorze.

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ANIMAL que habita em mim saúda animal que habita em ti. a vontade de alteridade é grande, mas, no fim, somos sempre nós mesmos, mutantes. se quero ser bicho, continuo sendo humano, pois mesmo debaixo de tanta pressão na fossa das marianas, alguém grita que não consegue respirar. e é bicho, bicha, biche. cada um com seu recorte, sejam particularidades ou farpas, cacos de vidro ou pedaços flutuantes de madeira mesmo. um soco na cara, outro no estômago: isso que dá ser biche hoje em dia, como sempre foi - olho roxo. desde que o mundo estourou da bolha, partículas vagueiam como poeira possível de existir. se dormimos, é porque precisamos dar um tempo. pausa para o fim do mundo, enquanto os gatos saem à noite e festejam depois da própria festa. as ruínas se reconstroem enquanto sonhamos com outros, e, como disse letícia, "todo noite eu arranco o meu coração; de manhã, ele volta a crescer".

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COMIDA é assunto delicado. não tenho touro no sol, nem ascendente. todas minhas terras são outras. pego o que está ao alcance da mão: afeto se faz com o que se tem. no parque, aquele sanduíche simples de carrinho, alface tomate queijo, é memória de gosto bom. em casa, capricho no bolo de aniversário, três dias em construção para que nada desmorone e, mesmo assim, permaneça macio. sim, é facilidade. mas também é trabalho, também é afeto, também é alimento. podia falar do tempo lento da fermentação, da cenoura que se restaura de murcha a firme se submersa em água. mas vai além. também é política. são seis garrafas de refrigerante que eu vejo no carrinho da frente, o queijo que vicia, o iogurte que tem mais seis, sete ingredientes além do básico. é memória antiga, como torta petróleo, nome estranho, mas que suscita sabor na boca; é memória recente, como o feijão com arroz couve e batata do almoço de hoje. memória vai além do macaron, café da tarde que não pulo (basicamente, não pulo café, pra ser mais explícito), gourmetização colonial exportada para o brasil como iguaria, chegando úmida, murcha, sem sabor nem pimenta. memória & afeto é cuscuz & café quente.

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FILME em preto e branco, como não canta o celacanto. acho que é mão enfiada no saco de grãos e cereais, talvez os morangos - porque são bem mais baratos aqui nos baixos trópicos - enfileirados nos dedos. a presença mais forte não é do crème brûlée, mas do parque de (d)(i)(n)(versões). misturo os versos, deixo colorir apenas as partes vermelhas e verdes, mesmo que deteste natal. mas a cor das pimentas, o cheiro assimétrico do açúcar que se inverte e queima, e que tem nome de cientista francês, é mais forte que o desamor. não é carne, mas é animal. como gato que brinca com as miçangas presas já que não há possibilidade de porta. me fecho, no aquário de vidro, e o que passa na televisão talvez não seja esse filme. frágil demais pra entender, busco os óculos e não vejo mais em colorido. é um momento. talvez eu mude a fita; os computadores hoje em dia nem tem mais leitor de cd. espero o dia que seja possível voltar no tempo. como filme noir que paira no ar o estouro da bala. minha vida não tem drama, e, por privilégio, nem bala perdida. todas são certeiras, e atingem meu coração diariamente. eu nasço eu morro. tiro de letra. como rio que não banha os mesmos pés mais de uma vez. e corro pro mar, no fim que chegou...

agora.

Um comentário:

  1. uma vez li em algum lugar "importante" que se conseguíssemos atravessar um texto rapidamente, aquilo que atravessamos era qualquer coisa menos literatura. Pois bem, as receitas são realmente umas porcarias mas gostei dessa e comigo ela geralmente funciona. Seu texto é assim: ele pede: para. Se você não parar não rola e se parar. Ui. Que alegria!

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