sábado, 6 de março de 2010

scarpin ou meia-pata: entrada para o pós-terreno.

I.
faz um bom tempo que eu não viro a mesa e encho a cara. um bom tempo que não enxergo através do copo, do corpo que me habita e da alma que samba em teu seio retumbante. antes era puro tesão. agora, já não é mais nada. falta-me o tateio de mãos constantes e toques inconstantes. falta vivacidade; falta amor. não tem mais amoreco nem estripulias. a vida já não é mais um sonho e não se fazem mais luares como antigamente. passa-se o tempo e o mundo muda. as cores perdem suas tonalidades iniciais e tudo se torna mais azul. os espelhos quebram-se a cada constantes dezessete anos e agora o céu já não é mais roxo ao entardecer de tardes frias de sábado.
carrega-me o corpo, sorve tudo o que é sacro deste mundo. copiosamente labora a mortalha vencida da solitude e traduz-se no maior ósculo já consumado. o sol que só se põe pela manhã tardará nos dias de ocaso; os talheres da taverna farão todo homem limpo das unhas beber na maior sordidez toda a sopa líqüida que ainda resta dos barris. e eu, enovelado de linhas abstratas de pensamento, reduzir-me-ei a pó irresoluto de confusão anônima. basta pensar no chafariz da praça que fica de fácil compreensão tudo o que é deste mundo estranho.
as tardes passeiam na neblina de potássio, procurando as chaves. e eu, que as tenho penduradas no pescoço, não atrevo-me a aparecer diante dos deuses dos raios celestes. diga-se de passagem, o medo temeroso de qualquer deus é triunfante em relação à borra do café que se espalha sobre a tábua espelhada de toda cozinha que se preze. basta à mim o sal que vem do mar e os aminoácidos presentes nas poças onde o oxigênio não entra. alguns diriam "alimentar-se de luz", mas não é disso que eu falo. é de outra cousa.

II.
tudo o que se torna irresoluto nesse chão encravado de pedras é toda aquela sordidez rebenta das fendas do cinismo cruel. as badaladas da meia noite, a igreja inteira a rezar por mim, pelos meus pecados. sim, eu sou o maior pecador dessa pequena e pacata cidade. diga-se de passagem, passarinho não passa por aqui. se não tem vento, não tem caminho. e pássaro vive de voltas, de pulos e de sonhos galhados.
sem som de cordas, o sopro não flutua. não existe sopro, aliás, nessas terras infundadas de dom pedro. sinto que aqui não deve existir amor. mas, como dizem ser eu um descendente legítimo de lúcifer, não arrisco-me a perder braço ou perna pela cidade exterior. prefiro a casa de barro, doença de chagas na cabeça e no coração somente a revolta contida. sentir-se um inútil nem é tão extravagante assim. extravagância aqui chama-se amor.

III.
de bar em bar, tento eu entrar por disfarces negros da alma. tudo entupido de maçã, o pecado original a nos perseguir. mas eva e adão não seguiram por que deus os mandou. os homens pediram à terra para soterrar-lhes toda a inteligência legítima, enquanto a mulher padeceria de sofreguidão. as terras, assim como prometido pelo pacto de esquecimento, pintou suas pernas de loucura e não tardou a arregaçar as mangas. tudo foi destruição. até o dilúvio não conteve a fúria da terra contra o homem. e a mulher, pobre apóstola, não podia representar nenhuma palavra de deus. a mulher foi uma sacrílega; a mulher foi sôfrega e penalizada pelos atos que não cometeu. cruel realidade da vida, a mulher infiel dos deuses que propuseram a um simples páris chamar-se filho dos céus.
oh, tanta magia e mitologia para uma pessoa só. deve ser por isso que escondem a cabeça por debaixo de panos nos outros lugares do mundo. o ser humano acredita em muitos mitos. tudo escatologia da mente, ecologia cotidiana fazendo-se necessária. os homens sem escrúpulos a dominar as imagens sacras e os periódicos de deus. tudo faz-se necessário.

IV.
o filho indo ao bar, pedindo licença à gente da terra. cerveja e cevada, cheio de homens trabalhando. aquilo não era império que se cruzasse. mas filho de rei não teme senão ao próprio pai. quiçá seria terminar o filme. eu preferiria continuar em sofás ou bordéis. mas, pelo fato da escolha não ser de minha pessoa, continuo aqui, nos quartos escuros, sem olhos brilhantes e diamantes escarpados.
diamantes escarpados: é o dente dessa gente de cá. a terra fértil, a boca já podre de pronunciar bobeira. por isso o santo mel não chega à cidade. deve ser um tal de januário ou ribeirinho do sul. se a flor não cativa mais, quem irá desenterrar esta cidade do mapa da antigüidade antológica do homem? precisamos não de uma teologia idiossincrática, muito menos a antropologia antropomórfica.
se tem balão no céu, foi porque deus mandou para furar. toda a pornografia da cena desfazendo-se num segundo, todos nus a cantar canções de jesus. o mesmo jesus da cólera, o mesmo jesus desnudo que amou maria por ser sua progenitora e abandonou-a na cruz. assim se faz a vontade de deus, renascendo filhos pelos pecados dos outros. é por isso que ninguém mais acredita em céu ou inferno aqui dentro de mim. o mundo lá fora sim, corrompido pelos pensamentos zoroástricos. alto astral, astrologia dos humanos, tudo regendo a cavidade nula. o mundo é nonada. e tudo ao mesmo tempo. e como pode? não perguntes a mim, cara irmandade.

V.
agora sim: deixa-me ver como eras o chão. agora que mostro a cara, que tenho a verdade manca no meu punho, dorso e cóccix. quero sorver num gole só este vinho sacro que me oferecem, ter em mim o impuro sangue, o álcool dos céus e o pão sem gosto. agora eu posso engolir o corpo de um santo. e isso não me faz menos humano e mais sagrado. sou corpo-de-estado, líqüido ou moderno. faço-me às avessas e agora, enfim, procurarei o meu ducto infinito de banalidades. quero os infernos dos homens, os céus das mulheres, os haréns que não me pertencem e que nunca irão pertencer a ninguém. tudo que quero é vida, morte e vida. morrer e matar por jesus não é vingança, mas, antes de tudo, uma força. intra-uterina que seja.

Um comentário:

  1. Prezado Lucas,

    Gostei de seu livro em formato de blog. Pela enorme plasticidade de sua escrita,não diria se tratar de uma junção entre Clarice e Drummond,mas de Joyce e talvez Buñel ou Cruz e Souza. Mas é evidente que está para além de uma definição,como você disse. Lendo os post há evidências claras de Exupéry,Augusto dos Anjos,Poe,dentre outros autores representados em estilhaços foscos.
    Parabéns pela escrita expressiva e barroca.

    Um abraço.

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