ela, o centro.

sentada no meio da rua, com as pernas cheias de feridas. o mundo sempre foi mal comigo, pensava ela. o mundo, o mundo, o mundo. todo o mundo. sempre nunca foi uma palavra tão forte. e ela, deitada em face da morte, não sentia o menor desespero de morrer. queria ficar ali para sempre, regurgitar seus pensamentos, e fazer palavras cruzadas com suas pernas descruzadas. nunca haveria de achar a palavra "amor" ou sequer "abecedário".

eram as mãos dele que a comandavam. não sentia ódio nem prazer se assim ele desejasse. não comia, não bebia, não dormia. ficava ali na rua até ele mudar. mudar o quê?, pensava ela. e não sabia. não sabia mais de ninguém e nem sabia mais dela. vivia sob a lua, numa terra distante, congelada pelo meio: a primeira a afundar.

uma flauta doce, um doce de jaboticaba... ela só precisava de água e de um pouco de calma. precisava curar as feridas, levantar-se e continuar a sobreviver. partir numa tarde com a saia mais longa e verde que tivesse, arrancar o sutiã, pisar descalça na chão e dar um grito profundo, inundando as ruas de dissabor romântico.

uma pequena mala bastaria, ela poderia ter pensado. mas não: uma mala não guarda coisas que nem o coração. ela tinha fios e fios na cabeça, um punhado considerável deles, e não ia desutilizá-los dessa maneira tão banal. tudo na cabeça dela. tudo, tudo: todas as dores do mundo. todas as cores, tons, sabores e dissabores. ela era o centro, o ponto, a via.

e o homem, mais alto, a olhá-la do terceiro andar. e quem é que se importa com você?, ele internalizava. e quem é que te perguntou alguma coisa?, ela respondia. tudo sempre fora metáfora. e seria agora que deixaria de ser.

levantou-se do chão, sentiu a perna fraquejar, mas não. nunca. foi, truncando, mancando, chorando... mas feliz. porque fazia bem a si mesma, porque fazia o que deveria ter feito a muito tempo.