Com os pés mergulhados em água de chuva que caiu na bacia vermelha, eu sei que meu cabelo está sujo, as unhas, grandes demais e da necessidade de comer menos chocolate. Sei que deveria parar de usar as roupas novas exaustivamente, ouvir menos música, estudar mais, reorganizar meu tempo, estabelecer metas etc. Sei de tudo que eu deveria e não deveria fazer. Sei porque me repetem todos os dias; sei porque vejo botas, porque escuto músicas, porque escrevo e porque ouço. Eu, matéria viva, feito de carbono e muitos outros compostos químicos, não me diferencio dos demais animais porque penso. Não, nunca.
– E quando começam os devidos acabamentos?
– Os acabamentos nunca acontecerão.
– Como não? A vida não é perfeita?
– Justamente. A vida não foi feita para ser perfeita. Perfeição é algo que não cabe ao animal, ao bicho.
– E as plantas arquitetônicas, os monumentos... Os gênios?
– Nenhuma dessas coisas é perfeita: pare e pense.
Desses diálogos que surgem as resoluções e “mirabolâncias” da minha cabeça de vento. Dessas conversas que nunca deveriam ter acontecido, que começam do doze.
Sinto, então, meus olhos sujos. Pego sabão e qualquer tungstênio que possivelmente sirva de canal que eletrifique minhas córneas. Sinto lâmpadas em minha face, sinto metal escorrendo dos meus olhos desarmados. Pego a câmera, fotografo o que não vejo: “a alma é impura de pedaços cinzentos de concreto/ o chão é duro como pedra que aquece a manhã sonolenta/e os teus beijos doces só doces serão se torta de maçã for feita amanhã”. Uma frase solta no ar, um poema dadaísta e uma pintura expressionista: acabou-se o romantismo da vida. Vida agora é máquina: enxada e pilão.
E, do fundo da minha coluna vertebral, eu pressinto o que vem por aí: muita chuva, dessas que enchem bacias vermelhas gigantescas. Dessas que nunca deveriam ter acontecido, que começam em dia doze. Essas gotas que pingam no exoesqueleto que ainda não tenho, mas que molham as minhas cartilagens, numa tentativa frustrada de desgastá-las. Sou forte, sim, apesar da minha dentição decídua, feita de leite da via láctea, ser cosmovisionário que sou.
Sabe-se do sebo, e das unhas crescendo sem fim. Uma gota que cai no diafragma e produz um som como um elétron emite uma tonalidade na sua migração reversa. Respiremos, enfim, um ar que entra em nossas futuras brânquias mutagênicas. Estribilhos, estribilhos. Os olhos sujos, os dentes recém-podres; muito café.
– É preciso uma limpeza denotativa – dizem-me os senhores entendidos.
– Mas, por obséquio, poderia valer-me de velas acessas durante a operação? – pergunto eu, curioso e atrevido como nunca.
– Não.
Categoricamente é a nova classe morfológica dessa palavra – já que virou moda reinventar a língua. E já que isso não é gênero, peco todos os meus erros e invento um novo dicionário. Um dicionário lexical que será chamado de “estribilho cosmovisionário”, ser cosmovisionário que sou. Pensarei nas galáxias distantes, nas luzes que não vemos e no leite que azedou dia de ontem. Vou criar etimologia nova, reformar a filologia do latim e, por fim, destruir o mundo de significação. Santo agora é merda, caros Serafins. Será o fim da língua/linguagem?
Categoricamente não. Os bichos, todos, comunicam-se não por palavras ou signos. Isso é capricho do ser humano. Bicho comunica-se gestualmente, com texto não-verbal ou verbal, tanto seja. Os pulmões respiram do mesmo jeito em todos, digo, todos os seres inanimados e eletrificados. Somos isótopos do mesmo carbono, somos feitos da mesma matéria que as rochas de Vênus. Vênus, a base mística do universo do novo.
Respiremos, estribilhicamente – se é que isso existe.
Belo blog =)
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