Quando as vísceras se acoplaram aos alicerces da multidão, os olhos do povo choraram lágrimas de crocodilo. Era pura mentira, falso pó de sílica. E a televisão a distrair, e eu des-trazendo os maus olhares. Foi assim que o circo se firmou: trazendo rios de gente, assentos, assaltos, caroços e frutas sem fim. Um colosso que ninguém discute, claro. Um clarão na mente, os olhos agora cegos.
Pois fui eu, sozinho, ver o palco, o teatro que se afirmou ali, em pé, fincado em terras novas. Com pau, pedra, eu assistindo a todo aquele “espetáculo”, aquele fantástico. A adjetivação que sempre se perdera em mim agora retornou para classificar os meus novos olhos, os novos assentos, as novas moças de minha vida. Foi na chuva, sim. Pois na chuva que a minha dúvida se desabou a si mesma, assim como um reflexo de espelho. Um espelho que não era meu, que nunca fora meu. Eu carregando um pires, uma xícara com uma água límpida. E a xícara não era minha. Não era chá, era água límpida mesmo. Pura, cristalina e transparente, dessas de jogar no rosto e ver no que dá.
Joguei no chão. Aquilo não era pra mim; não era eu. Eu nunca haveria de ser um reflexo de mim mesmo, nunca haveria de segurar uma xícara e um pires, retrato. Não. Besteira dizer tudo aquilo defronte duma pessoa qualquer da rua, pior dizer a mim mesmo. Preferindo guardar aquilo no coração, seja na cabeça, uma risada longa que duraria para sempre no meu pequeno estômago. Eu senti cãibra. Deveria espancar um toco de madeira, chorar até morrer, ir para a guerra, morder um pedaço de carne podre, morder um pedaço de carne podre, morder, dilacerar um pedaço de carne podre. Esse era para ser eu. De casaca azul, fraque prata, olhos roxos, unhas verdes. Esse não era eu. Esse nunca seria eu. Eu sempre vestiria casaca preta, fraque preto, olhos pretos, unhas pretas. Minha boca jorrará sempre um líqüido viscoso. Ele tornar-se-á preto.
De longe eu sentia que aquele circo não era minha vida, aquelas meninas ao meu redor não eram minhas. Eu só era pura mentira. Eu, falso pó de sílica. Eu mesmo a des-trazer os meus próprios olhares ruins, meus dedos calvos, minha cabeça arrancada, meu percurso trágico. Eu, todo eu. Lábios secos, cor de chão. Eu nunca seria cor de planeta, saudável, azul cor do planeta. Eu nunca seria humano, nunca seria natural. Seria sempre essa farsa mórbida de azul celeste e tinta cinza claro.
Sendo des-dono de mim, eu deveria trazer a noite, o frio, o sangue, a música mórbida, os olhos cansados. Eu deveria ser dono de mim. Eu deveria ver o sol, nascer mais uma vez, junto de alguém, ter uma mãe, pai, tios e primos. Deveria sonhar além daqui, pensar em outros cosmos, em outras conquistas, outras leituras possíveis, novos livros a engolir para sobreviver. Eu deveria sobreviver a tudo isso. Eu, como ser humano não-autêntico, deveria transpor-me a mim, largar de tudo, água, dançar no salão do mar, tentar de tudo para fugir e falar uma língua que fosse mais parecida com o russo. Deveria, então, fingir ser esse um do espelho, aquele outro do salão, aquele terceiro que se deitava ao chão porque estava com calor e mais aquele outro que se encontra todas as noites numa esquina escura fazendo coisas que a sociedade condena hipocritamente.
Cantarolar seria uma boa saída, mas, na prática, não é.
Gostei muito do seu blog!!!
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