quinta-feira, 24 de junho de 2010

deserto da alma.


numa noite fria qualquer, nem importa quando. o sol batia de leve na minha testa e eu só sentia uma pontadinha de ardência dentro do meu peito. era o frio mesmo, brincando de endurecer-me as vestes, como se, talvez, uma gota d'água atingisse sua metáfora perfeita e fizesse de tudo ali uma bela maravilha. congelada, claro. tipo frio no deserto.
nessa noite eu até pensei em dormir, mas já era tarde demais. cedo demais pra pensar em morrer soterrado, tarde demais para lembrar dos filhos, na hora certa de lembrar do significado da vida que, ao certo, ninguém realmente sabe. nem deus. e eu decidi me sentar num banco imaginário, já que qualquer oásis me traria uma falsa ilusão de cadeiras. a água jorraria pelos cantos, mas eu, como bom homem-cacto, não me necessitaria disso. teria até certo nojo de beber uma água vinda da areia, cheia de seus escorpiões, apesar da sua filtração. mas não, o veneno não me serviria. pelo menos não naquele momento.
de longe eu ouvia as preces e pensava que, se assim fosse, em dez minutos eu encontraria um bueiro e iria correndo para casa. os ratos talvez tentassem me impedir, mas nada que um pouco de comida não faça. a lei da sobrevivência é forte por aqui. e por todo o mundo, para falar a verdade. e se eu quisesse mentir, teria feito isso há anos atrás, quando ainda me restava tempo nas mãos. naquela noite já não me sobrava mais nada. nem um pingo de água, nem um pingo de compaixão. talvez veneno, mas não era coisa que se queresse.
as horas foram passando e eu pensei que talvez, se eu realmente quisesse voltar pra casa, eu deveria agir rápido, pensar rápido, matutar. dali eu não sairia tão facilmente. era claro: fui preso numa cilada. um labirinto de areia, que desfaz e refaz caminhos a todo momento. eu deveria ser rápido e ágil, acertar o soco certeiro no nariz do adversário, sentir nos meus ossos a vibração dos outros ossos se partindo. queria poder rasgar a cartilagem e poder rir de fúria, sentir-me, assim, o dono daquele lugar. seria bom dominar conspícua e vegetativamente aquele lugar. eu seria o rei dali, seria o rei dos mares de areia. mudaria a grafia dos então meus oceanos, teria controle sobre as ondas. mas eu não teria controle sobre o meu coração, sempre a bater por mais alguém, alguém que estaria longe, porque, por mais que eu navegasse por aqueles mares, por mais que fosse levado por correntezas a novos lugares, nunca sairia dali de mim. aquele mar era a simbologia de mim, meu signo concreto e natural. eu me via naqueles espelhos de grãos, os grains de beauté que eu sei que nunca tive e que sempre quis ter. eu não me pertenceria dali a nunca mais, pois a areia faz coisas inimagináveis com os bichos, todos. e não é por malvadeza, mas por puro instinto natural. é a lei da sobrevivência. e seria assim até eu morrer e aparecer outrem, outro rei, outra rainha, até os ossos começarem a se desintegrar na areia que não, não era macia!
as lágrimas que deixei cair ali não formariam um poço. todo o suor que derramei tentando me manter naquele lugar inóspito secaram como hoje secam as carcaças de animais loucos que por ali resolvem passar. eu me vi dali a vinte anos, sangrando seco dentro da areia, a areia me servindo de casca, de casulo, e eu nunca sairia dali borboleta, nem que fosse por um dia. ali não era lugar de beleza bonita, beleza feliz. ali era lugar de beleza que se chora, que se sente pena sem ter compaixão, beleza seca. como quando falam que suas pintas lhe dão seu charme mas que vão retirá-las porque sua mãe ou seu pai não aceita.

(...)

eu secaria ali, eu sabia, até meus dias finais, até os nossos dias finais. até o fim, eu iria, permaneceria vivo, só para provar que eu não era fraco, que eu perderia todos os meus dentes, todas as minhas pintas, meus filhos, tudo, tudo, menos a minha vida.

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