um novo dia amanheceu nessa cidade e o garoto que uma vez não tinha pernas perdeu também os braços e a cor dos pêlos que tinha escassos pelo corpo. seu cabelo agora era branco, branco de um albinismo sem fim e desprotegido de cor. ele sentia frio no sol da manhã; o vento quente estremecia sua pálpebras e ele só pensava em nadar, numa tarde quente, num lago quente, em águas quentes. queria fontes termais mais dentro dele do que fora. talvez não entendesse aquilo como metafísico porque seu mundo nunca foi real. e ele sempre pensou em água, água, desde que nasceu e morreu nesse mundo. poderia ter o cheiro que fosse, mas ele não queria mais sentir o sol queimar a sua pele. sua maciez esmorecendo e o seu astro a lhe maltratar. ele só pedia por um pouco de paz quando fechava os seus olhos brancos e chorava as únicas lágrimas com cor do mundo. não que o próprio se considerasse sem cor ou que a transparência das gotas fosse ausência de nada, mas ele se sentia especial, ao menos nisso; ao menos quando chorava. suas lágrimas eram pra lhe alegrecer. isso, alegrecer, pois alegria ele nunca teria. não neste mundo duro e craco. isso, craco, pois seu vocabulário era escasso e inventivo, que palavras de homem não conseguiam alcançar.
ele dançava ao luar da meia-noite e mesmo assim se sentia triste. como se todos aqueles sons de violino não fossem o bastante; como se o toque do piano e o harpiar da harpia e o sopro da flauta e os pássaros e tudo. nunca passava daquele sentimento de querer estar além dali. além daqui mesmo, dessa cidade sem saída.
“todos os sóis se foram junto com o sal da praia”, dizia ele em voz alta. mas ninguém lhe ouvia. não havia ninguém ali pra lhe ouvir nem pra conversar com ele. tudo que ele tinha era uma casinha pequena cor de laranja tão fraco que quase não se via e um bolo, intocado, de um sabor que ele não sabia. já fazia muito tempo desde que ele fez aquele bolo com a farinha que alguém deixou debaixo do seu travesseiro numa das noites frias que tentou enfrentar. não sabia e nem queria saber se foi a fada do dente, do leite. só ficou feliz, feliz ao ver a farinha, ao poder fazer o bolo, ao fazer o bolo. mas, depois de feito, com que dividir a alegria?
desde então inventou de alegrecer, por instantes, e depois esmorecer nas sombras assombrosas que não lhe assustavam dentro do seu casebre alaranjado. era como o tijolo dali: duro e laranja. seu rosto era quase pálido, sua voz, mais do que tudo, fraca e rouca. resolveu emudecer, para sempre, com seu bolo preso na garganta da divisão que nunca aconteceria. esperaria por anos a morte chegar e lhe levar dali, pois tinha a certeza, incontestável, como aprendera no papel que lera ao acaso, que a morte chega a todos. chega.
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