agora sim eu posso sentir o cheiro das uvas passeando pelo ar que as nuvens sopram para o lado de lá. eu sempre pensei que nunca teria este momento ínfimo de volta à minha vida. pensei que nunca mais sentiria o brilho das esmeraldas no meu olho, as pestanas doendo para dormir, pensando naqueles dois irmãos que vi refletidos no rio. o tempo é leve e eleva os nossos sonhos, lava nossa boca e pensa por nós enquanto trocamos as mãos por outras coisas de pele. o leite que escorre do peito, o sal que corre do olho, o gosto ruim que fica na boca quando a gente engole doses de café seco.
pensei que nunca mais teria o fim. e pensei tanto que cheguei a planejar o fim, planejar como quando agora escrevo palavras numa via láctea que talvez não exista, que talvez seja só coisa dos homens e mulheres que nem conheço. e mesmo assim faz falta. de ter por perto alguém ou algo que sinta o mesmo vento. mas fica melhor assim, sentindo só do que não sentir.
ai, foi o mar morto em minha vida. e talvez a remela também faça parte desse mim-eu que eu deveria ter certeza de que sou, ou não sou e não sei se sou somente o que quero ser. sabendo que, quando o tempo e o vento passam por perto e o gosto ruim daquelas doses de café sem álcool passarem pela minha garganta seca, eu sentiria mais tremores na epiderme do que quando eu senti tremores na derme de verdade. o que seria real para mim, então, vira farsa; e tudo o que eu pensei naqueles pesadelos que tive noite passada não passaram de verdades vividas por mim ontem à noite mesmo, confirmando a minha provável tolice. ou sonambulice. nem sei.
talvez esse seja o momento de eu tentar me libertar do que tentei ser e nunca seria se eu não tivesse crescido tanto ontem à noite. esse gigante que ficou no meu corpo querendo sair e rasgando toda essa pele que eu nem sei para quê. como quando eu vi aqueles dois irmãos - gêmeos? - refletidos no espelho d'água que tinha numa cidadezinha qualquer que o nome eu não me recordaria nem se eu quisesse. e como eu não quero, o meu querer fica querendo que eu queira somente relembrar-lhes os rostos, a face pálida e esquálida de um e o beiço torto do outro. o bom-dia que me deram quando eu derramei as lágrimas de um olho negro que vinha guardando a cinco anos, o riso torto, os porquês, tudo guardado num poço profundo que ficou ali no rio mesmo, sem fim. e que talvez nem adiante o meu retorno, porque voltar ao lugar nunca funciona, nunca é o mesmo. lugar talvez seja específico de momento. e é. e eu nem sabia até agora. talvez agora sim eu possa correr, depois de sonhos intranqüilos.
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