quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Infância.





















Um pouco de neve salpicada por cima não faria mal algum. Falta um pouco de azul nessa casa, nesse espaço que um dia foi tão cheio, tão vermelho e laranja, o mais amarelo que o sol consegue ser para meus olhos. É um pouco difícil compreender, diria que não consigo entender porque as coisas envelhecem. Tão doces e carinhosas, por que as casas também vão desatinando aos poucos? Perdem-se os pedaços vistosos da frente, o mato vai crescendo na frente e acabando atrás, criando um buraco no mundo que se instalara outrora pelas minhas costas.
Quando todos os sentimentos se vão, quando uma casa que se viu e viveu por cerca de vinte anos, quando tudo vira pó, só, não resta nada além do ato de soprar a sentir que a gente não pode guardar nada desse tempo que não seja lembrança e poeira cósmica da memória. Pode parecer besteira ou criancice, mas, se um dia eu não tivesse sido criança, talvez eu pudesse discriminar tudo o que já não faz parte do meu mundo verdadeiro de hoje, do meu mundo real, da minha vida, real como tal e qual pedaço de terra com lama barrenta me fazendo escorregar. Se eu fosse criança, meu próximo passo seria sorrir e procurar algo ou alguém para sujar também. O engraçado – ou nem tanto – é que no dicionário que não cabe no meu bolso lê-se que criancice é o mesmo que leviandade, como se todos os meus sentimentos pré-dez anos fossem pura ensaíce, seja lá o que isso quer dizer, se existe ou não, se é criancice ou imaturidade de minha parte.
Sabe, é um pouco difícil falar de mim enquanto criança, principalmente porque desde lá até aqui, nunca vi flocos de gelo caírem do céu e pousarem no meu nariz. Não digo que quem não experimentou esse ensaio de natureza não tenha sido criança ou ultrapassado a fase de o ser, mas é que, como criança, eu não me adequei ao meu chão, quente e com frestas. Meu chão tinha de ser de gelo, gelo puro, sem derreter nada, nem se eu tocasse com a boca, com a língua, encostasse a língua no gelo, ficasse preso por alguns minutos e, depois de expirar um pouco, ver-me livre de algo que, no início, fora só uma brincadeira boba, leviana. É que meu vento pesa mais, o azul enche meus olhos e meu sofá tem pássaros da chuva. Não sei se me explico bem, mas, descendo a serra bem devagarzinho, dá pra ver tudo o que eu senti enquanto pequeno puto que não nasceu em Portugal.
O mato foi crescendo e cobrindo tudo aquilo que um dia foi da cor do sol; o capim-selvagem entrando pelas janelas, interditando os espaços e criando caminho para as formigas na busca do precioso grão açucarado. Já vi os rostos radiantes, os olhos vermelhos e brilhantes de quem precisa de mais e mais, cada vez mais, tentando, a toda força, a qualquer custo, invadir um espaço que já fora fechado à visitação. O vidro rachado, a chuva que não cessa e o sorriso triste de quem tenta manter as aparências de uma estrutura firme, mantida de pé, por um tripé clariceano, a minha terceira perna que fui obrigado a manter, a criar.
Mas já era hora, tempo de andar com minhas duas patas locomotoras, meus pés cansados de não andar, mas serem arrastados pelo banco que me manteve ereto durante toda essa primavera que passou. Quem sabe o que é isso talvez tenha ouvido a mesma música quarenta e quatro vezes, talvez a mesma que eu ouvi. Talvez tenha visto a mesma flor pequenina brotar enquanto a tempestade raiava no leste, apontando com o som o oeste do meu ver. A mesma flor, o mesmo desfoque e a mesma dor, que recai sobre o segundo coração, o que se põe no lado direito, que quando a gente corre demais, sobe muito alto, bate mais forte, avisa que precisamos voltar, e voltar o mais rápido possível, que as alturas tem baixo estoque de ar para a vida que a gente vive. Mas eu não quero voltar. Se dizem que a vida é um jogo, eu devo avançar de nível a cada passo, volto às vezes, mas avanço mais dois, não é? Quem se dispõe a responder as minhas perguntas superficialmente existencialistas?
Talvez eu deva retornar também, não com os pés. A mente é um mar de coisas que flutuam e no qual eu posso pescar minhas passadas e presentes percepções do que vejo e do que vi. Quem sabe mais do que eu o que é viver do jeito que eu vivo? Quem sabe o que é viver? Existe só uma forma de respirar? Existe só uma forma de assar o pão, de amassar a terra molhada nas mãos secas, de passar a lama no rosto? Eu tenho várias opções, dentre cores e sabores, mas, nesse tempo todo eu acredito que entendi a dica para o meu próximo passo: por mais opções que existam, só existirá um caminho feito por mim. E é esse caminho que eu irei trilhar.

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