deu três passos para trás: aquilo era o muito pouco que poderia fazer. e tudo o que havia visto se tornou, de repente, um pingado na padaria da esquina. queria ter visto muito mais, queria ter sentido na pele dos pés tudo aquilo, tudo aquilo que fora pisado e doído dentro do outro. ele era muito mais para, muito para dentro e pouco para fora, e, sentindo como se aquilo fosse de verdade, pisou o chão quente, o asfalto vibrando a olho nu, sentiu a nudez dos seus pés queimar a Terra. a verdade lhe queimou por dentro e, para fora, saíram as gotas de chuva, escorrendo, uma a uma, na face seca dos seus dezoito anos pouco vividos ao exterior, chegando, enfim, ao dedo mindinho e, por fim, saltando numa queda livre até se espatifarem no chão, desiludirem-se em vapor e sumirem do campo de visão. o campo de visão que se tornou tão úmido e tão áspero ao mesmo tempo, contrastando com os latidos dos cachorros da vizinhança, querendo morder aquele pedaço de carne exposta, praticamente frita. deveria ser um câncer. mas a água deveria - não deveria? - curar todos os males, todas as dores e os mares que saíam de dentro para fora e voltavam, invariavelmente. não havia força de vontade que segurasse aquele rio a desagüar, não havia sol que se pusesse na esquina da rua amarela com a azul e não se liqüefizesse.
era muito ou pouco para tudo o que deveria vir, e o que deveria ainda ser visto era o muito do que precisava. e, então, a única saída seria, então, caminhar a passos largos e sentir o seu rio se formar, sentir a suavidade da água a entrar pelos seus poros e, enfim, reidratar, à sua imagem e semelhança, a pele morna dos seus dezoito anos ainda mal vividos e tão carregados de sentimentos. a única via possível não era falar, mas desenhar no céu, mesmo olhando para o chão, aqueles que seriam seus passos num futuro bem próximo, ou distante de tudo o que haveria de ser. nada era muito certo para que se instalasse a certeza do que é incerto. pois, por isso mesmo, sentia as moléculas, cada unidade delas, a entrar e sair de sua pele, sentia, mais uma vez, seus pés mornos e frios, congelados e derretidos pelo calor humano que o sol proporciona àqueles que raramente aventuram sair de suas casas, suas tocas e cavernas.
o próximo passo foi abrir a boca e deixar sair aquele ar carregado dos seus dois pulmões, sentir o ar sair da boca fria, sentir o ar frio, sentir a densidade das suas palavras não ditas a mergulhar água abaixo e descer num fluxo incontrolável por conta de seu peso estonteante, lúbrico e sensitivo. ploft deve ser o som que todos esperavam ouvir. mas o pouco tempo não deu à luz a velocidade necessária para encarnar a realidade em si e, em vez disso, o que se ouviu foi o silêncio. suas palavras já não tinham mais som nem significado. não eram mais palavras, não era mais nada. eram o não ser do que deveria ter sido dito a muito tempo e, ao não ter sido, nunca mais seria. nada de mi, fá, sol, nada de som, nenhuma melodia composta por sua voz. voz, aliás, era justamente o que não mais existia. sua garganta era um peso, e suas cordas vocais, de tão frágeis que se tornaram, partiram invisivelmente deste mundo para não mais retornar. o que permaneceu foi o peso nos pulmões, que, agora já não mais pesavam. desse mundo, já foram para o outro e nem sequer tinham a capacidade de intencionar voltar. volver, aliás, era o que nunca haveriam de fazer.
petrificado, o que lhe restava agora era esperar, esperar o eterno retorno que nunca aconteceria e no qual, durante o resto de seus anos, fariam-lhe acreditar esperançosamente. mesmo com as bombas, e até mesmo com as pombas brancas, ficaria difícil respirar sem sentir a falta de algo preenchendo sua garganta. o costume é algo que pesa durante os anos seguintes. mas ele não queria, e nem poderia, ficar feito cimento seco em cima de estrada, e, por isso mesmo, desagüou junto com suas lágrimas; no fluxo perene, desceu a ladeira e chocou-se de frente com o mundo, que lhe esperava calmamente, abraçando-lhe a face tenramente e, como numa forma de choque elétrico, sobrepôs as próprias lágrimas sobre a dele.
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