O céu estava claro, exatamente como disse a mulher do tempo. Mas não era nisso que eu pensava. Eu olhava para o céu azul e lembrava da conversa no telefone. Que horas terminamos aquilo? Bom, pouco importa. Falamos de quase tudo; praticamente ficaríamos sem assunto para aquela tarde.
Ele não me disse qual era o seu apartamento, mas foi fácil de descobrir. Afinal, conheço o Edgar, seu gato, que fica sempre olhando pela janela. Acho que ele estava olhando o céu azul e pensando na nossa conversa no telefone.
301. Dava pra ver as curvinhas que o meu cabelo faz se eu olhasse para o lado, vendo quem estava me seguindo. Aquele garoto pensou que eu não o tinha visto, coitadinho. As pessoas realmente pensam que eu sou besta ou ingênuo. Pois essas são as coisas que eu menos sou.
Eu sentei numa cadeira verde de plástico que tinha ali perto. Não queria aparecer tão cedo. Eram 15h15min. Muito cedo. O garoto me olhou. E eu olhei pra ele, é claro. A camiseta amarela dele até que era bem interessante. Não era uma simples camiseta amarela. Era a camiseta amarela daquele garoto que pensou que eu era bobo e que eu conseguia ver através das curvinhas que o meu cabelo faz. Está vendo? Tem todo um contexto para certas coisas.
– Que horas são? – ele me perguntou.
– Três e quinze. Qual seu tipo sangüíneo?
– O positivo. Onde você nasceu?
– Na Rua das Maçãs. Pra onde você gostaria de ir agora?
– Para uma cadeira amarela ao lado da sua.
– Então sua cor preferida é o amarelo?
– Sim. É tão óbvio assim?
– Deduzi pela sua camiseta. Vamos aos finalmentes convencionais: qual é o teu nome, garoto?
– Louis. E o teu...?
– Cássio. Minha mãe tem uma paixão tremenda por esse nome. E eu até que gosto. Acha bonito?
– É diferente.
– No sentido que as pessoas usam ou no real sentido?
– No sentido de que eu gostei; gosto do que é diferente.
– Então temos algumas convergências.
– É, acredito que sim. (...) Quem te ligou ontem de noite?
Eu me espantei, claro. Como o garoto sabia que haviam me ligado ontem pela noite? Será que ele estava me vigiando ou algo assim? Será que eu estava fazendo parte de uma versão menos assustadora de 1984 do Orwell?
– Se não quiser responder, não precisa. Não vim lhe obrigar a dizer nada, nem lhe esfaquear nem lhe extorquir. Perguntei por curiosidade. Ou por falta de assunto.
– Não me importo em dizer. Mas só digo se realmente quiser saber.
– Não, eu não quero. A não ser que você queira me dizer.
– Chega disso, né?
– Pavio curto?
– Um pouco. Costume de família.
– Bem sei. Todos os meus irmãos pegaram isso. Menos eu.
– Então é o calmo da família?
– Era. Saí de casa faz dois anos.
– Padrões morais da sociedade atuando: e quantos anos você tem, menino?
– Dezessete. Seja recíproco.
– Vinte e um.
– Não tenho nenhum amigo de vinte e um.
– E conhece alguém?
– Você. (...) Quer dizer... Conheço de vista, sabe como é.
– Sim, sei.
– O que mais você sabe?
– “Só sei que nada sei”.
– Citações nesses momentos são engraçadas, porém frustrantes.
– É, realmente. Não fui muito feliz na minha fala.
– (...) Eu queria ir além.
– Até onde, mais ou menos?
– Até o terceiro andar desse prédio.
– Quer ir agora?
– Não. Ainda está muito cedo. E o combinado foi 16 horas. Ainda são...
– 15:20.
– 15:20.
Ele se sentou ao meu lado, no chão mesmo, pois nem sempre nossos desejos tornam-se realidade nos momentos em que os desejamos. Eu fiquei um tempo olhando pro chão, ele pro céu, justamente quando deveria ser o contrário.
Dali a cinco minutos olhou para a minha perna. Perguntou-me se não queria caminhar um pouco. Frisou novamente que não iria me esfaquear nem me extorquir. Nada, nem meu rim. Eu ri, é claro. Ele ficou sério.
– Eu falo sério.
– Eu sei – respondi diminuindo a risada.
Sorri, sem mostrar-lhe os dentes. Ele foi recíproco. Ele levantou e estendeu-me a mão. Um pouco suja de terra, mas tanto faz. Segurei-lhe a mão e ergui meu corpo da cadeira de plástico verde. Caminhamos até a metade da rua, que por sinal se chamava Rua dos Girassóis. Como não poderia ser diferente, fiz-lhe a pergunta mais óbvia do momento:
– E de girassóis, você gosta?
– Gosto dos de Van Gogh.
– Oh, sim. E de que mais você gosta?
– De que ou de quem?
– Tanto faz. Afinal, pessoas fazem parte do grupo das coisas.
– Gosto de tanta coisa que não vale a pena nem falar. Mas ir descobrindo aos poucos. Descobrindo-me aos poucos. Não que eu esteja me escondendo, mas... Você entende?
– Entendo. Só não entendo por que você vestindo calça jeans com esse céu azul...
– Azul vômito.
– Isso.
– Convergência de pensamentos.
– Re-significação de palavras matemáticas.
– Conhece alguém de nome João Coração?
– Não, mas gostaria de conhecer.
– Joga na internet. Sempre aparece coisa pra qualquer palavra ou nome que você digita.
– Pena que estou sem internet por esses tempos. E não sou fã de lan houses.
– Na casa 301 não tem internet?
– Não, na casa do Rodrigo não tem internet. Não que eu saiba. Mas ele freqüenta lan houses.
– A não ser que ele tenha resolvido assinar um provedor.
– É bem possível.
Ele começou a soletrar. C, o, m, o, u, s, e, m, i, s, s, o, v, o, c, e, m, e, p, e, r, g, u, n, t, o, u.
Debaixo da terra se formavam novos bulbos de cabelo em cadáveres que foram enterrados ali no século passado. Louis sabia como reviver os mortos.
– Que horas são? – ele me perguntou.
– Já é hora de voltarmos. Vamos?
Estendi-lhe a mão esquerda, aquela que não estava procurando um papel rosa no bolso. Ele segurou forte. E assim voltamos ao portão do prédio verde, número sete-vinte e um. Em frente ao prédio ele rasgou um pedaço da sua camiseta amarela e me entregou.
– Fica pra você.
Eu não sabia o que falar; não sabia o que fazer. Ele pegou minha mão direita, tirando-a do bolso da bermuda jeans que eu estava usando na ocasião. Veio junto o papel rosa que eu estava procurando. Na verdade, eu já tinha achado, mas não tinha achado o momento apropriado ou desejado para retirá-lo do bolso. Às vezes somos forçados a fazer as coisas acontecerem.
Ele colocou o pedaço de pano na minha mão e pegou o papel rosa, desdobrou, desdobrou, até o fim. E olha que eu dobrei mais de sete vezes. Era um papel não muito pequeno, realmente grande. Não sei dessas coisas de tamanho A4, mas era maior que uma folha de papel ofício. Mas não muito maior. Duas mãos, vai.
Eram quase 16 horas e ele ainda fitava o desenho que eu havia feito naquele maldito papel rosa que tinha de estar no meu bolso naquele exato momento. Realmente, aquilo deveria e era pra acontecer. Certos fatos estão marcados em nossa trajetória.
Ele não concordaria comigo se eu dissesse que ali não era ele, que eu nem sequer tinha me aventurado a pensar nele durante esses dias que o percebi olhando de lado através das curvinhas que o meu cabelo faz. Ele não acreditaria. E nem eu ouviria o que eu falaria. Não ouço as mentiras que falo. Pois não devia ser assim. Eu deveria ter plena consciência do que falo.
Nem tudo é doce. Não é todo dia que eu faço bolos de chocolate. Não é toda tarde que eu vou no prédio verde do Rodrigo, número sete-vinte e um e converso com um garoto vestindo uma camiseta amarela que é só dele e uma calça jeans. E só. Pois calçado é só pra quem tem pés macios. E na dureza dessa realidade, eu e ele andamos descalços mesmo.
Acho que ele só desapareceu porque, naquele dia, eu usava uma sandália verde. Pensei em colocá-la porque... Porque eu ia na casa do Rodrigo, prédio verde. Não esquecer a cor, sei lá. Qualquer motivo não é bom o bastante pra justificar o desaparecimento dele.
Eu... Eu realmente não queria que o Louis sumisse. Mas nem tudo que a gente deseja acontece no momento em que a gente deseja.
oii..tem um selo pra vc no meu blog se te interessar... esses negocios de selo sao meio q uma corrente ne...eita...rs bjus
ResponderExcluirque lindo, Lucas.
ResponderExcluiracho que esse é o post mais legal, bonito, sonhador, mágico, etc, etc, que vc já escreveu aqui no blog.
me fez viajar pra muito longe e imaginar cada cena e detalhe da história.
confesso que amo seus escritos. eles despertam em mim uma vontade louca de escrever. tentar escrever bonito assim. Mas isso é só seu :)
se caso algum dia vc escrever um livro, me avisa, ok? vou querer um exemplar autografado, tá?! :) rsrs
beijo, Thaís.