domingo, 6 de setembro de 2009

Falta açúcar?

Não sei se conheces as duas faces opostas da lua, mas me parece que esse garoto as tem. Com o cheiro de álcool em suas mãos, ele diz que me adora e tenta me abraçar. Não sei porquê, mas eu sempre me esquivo. Não dele; mas de abraços. Acho que é como se fosse inerente a mim. Mas eu tento não o fazer, pois por mais que eu deteste manifestações calorosas de afeto, ele me faz sentir bem.
É muito mais do que isso: ele é amigo. Amigo daqueles de verdade, daqueles que a gente até daria um beijo na testa, por mais que odiemos manifestações calorosas de afeto.
Um som de piano ao fundo, uma sala com lareira e sofá verde. Ele no canto, tocando flauta; eu no sofá, contando as estrelinhas que dá pra ver céu através da grande janela. Mesmo de costas, eu consigo ver em seus olhos a inspiração do seu sopro. Não, não é abordagem do cotidiano: não é todo dia que a gente sente num sofá verde.
A qualquer hora ele se cansa. Eu não tenho relógios de bolso nem pulso; nem as paredes. Não sei dizer-lhes hora exata, portanto. Mas de que importam as horas? Basta saber que era noite. Ou madrugada, não dava pra saber. As flores no criado-mudo não sabem dizer o turno.
Ele deve ter pensado que um pouco de suco ajudaria, a julgar pelo barulho do liquidificador. Deve ter escolhido alguma fruta vermelha, com certeza. Ou algo mais puxado pro tom vinho.
Pronto, ele voltou. Ele voltou com dois copos, deixados sobre a mesa. E sentou no sofá à minha frente, e tirou um cigarro do bolso da camisa, e pegou o isqueiro na mesa. Hesitou um pouco e por fim deixou ambos, o cigarro e o isqueiro, na mesa. Eu quis fechar meus olhos e ouvir apenas a sua respiração. Mas ele não deixou. Nem ele nem o piano. Eu queria falar para ele abrir a janela, mas ele também não deixou; nem ele nem o piano. E ficamos assim por alguns minutos, ele me fitando com seus olhos de cor indefinível e seu queixo pontiagudo.
Uma gota caiu no copo mais à esquerda da mesa e eu pus-me de pé. Mas ele não permitiu que eu continuasse. E dessa vez foi só ele. O piano fazia pouco caso. Ele pousou o dedo indicador sobre a boca e fechou-me os olhos. Não faço a menor idéia dos lugares que eu passei, dos lugares por onde ele me conduziu. Tudo era escuro no meu olhar cerrado. Nenhuma luz acesa, nenhum nada.
Sei que ele tirou-me os sapatos, roubou-me a camisa e as meias. Passou a mão pelos meus cabelos, soprou minha nuca e me fez sentir calafrios. Fez-me beber de um copo, fê-lo derramar líqüido em mim. Pelo sabor, era suco. Perguntou-me se faltava açúcar; fiz que não.
Depois de passar os dedos por meu rosto, deu-me um tapa à face e foi-se embora. Como ele previa, eu permaneci sentado por 11 minutos e tentei abrir a porta do quarto. Ele riu alto para que eu ouvisse. Riu mais alto que a minha tia e depois falou-me quatro palavras.
E saiu. Saiu. Tudo ficou calmo-tranqüilo e eu não tinha de me preocupar com necessidades imediatas. Deixou-me suco da fruta e pita. Esqueceu-se da tinta e do papel, mas essas eu já tinha. Esqueceu-se também da janela aberta.

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