quando eu me deito assim, minha cabeça vira um losango. um quadrilátero perfeito, pontiagudo, perfurante como navalha em meu travesseiro. sinto pelo nariz as penas a deslizarem. uma suave brisa as empurra, um terremoto do outro lado do oceano que me separa de um pássaro que ainda não sei o nome, não sei o nome, o nome. e eu o sinto, levemente, tamborilando bem de leve as minhas narinas, que se contraem e descontraem por bem pouco tempo. eu levo pouco tempo para perceber que não consigo sentir minha perna. mas, mesmo assim, que diferença faz? nenhuma: uma perna a menos para mim, uma cabeça a mais para outro. posso sentir na pele que a falta de um órgão pode doer menos que a perda de um filho, mas, uma vez que determinei-me, para o resto da minha estadia no mundo, infértil, veja, infértil serei. não poderei nunca, nunca, comparar o que quer que seja com a dor de uma separação entre pais e filhos, com uma criação infeliz, com um ou dois distanciamentos maternos e fraternos durante dois períodos completos de uma volta no ciclo haplodiplobionte da vida de uma planta, pois que sou planta, pois que não sou o que sou, não sou humano, ou sou humano-vegetal, vegetal no verão passado quando não tinha noção do texto que haviam escrito em minhas mãos puras, minhas mãos puras de sangue vermelho, puras, digo, sujas de sangue, de vinho tinto, do meu sangue frio, ou não sou uma espécie de crocodiliano?
penso em pensar no fato de que pensei uma vez numa confusão de palavras que não me levariam a lugar nenhum, uma vez que, se o peso da minha cabeça perfurante fosse mais leve aqui do que na lua, eu não estaria aqui, e sim na lua. ou estaria eu na lua no momento em que penso em deixar esse mundo? o fato imutável é que já não pertenço mais ao aqui, e ao agora eu deixo as minhas condolências, a minha marcha fúnebre, o meu réquiem, a minha canção post-mortem e a dor que qualquer sujeito, seja planta seja bicho, deixa no coração pentacavitário da terra molhada pelo suor dos céus.
sei que falo demais no que penso após o terreno, mas deixo para mim mesmo a dor de sentir na pele o que é o não-ter, o não-poder e o não-sentir de uma vida que passei inteira sentado ao piano obrigado não por meu pai, não por minha mãe, não por uma avó eventual que me criou dos cinco aos dezessete anos, antes mesmo de eu perceber que poderia fugir de uma casa que, durante anos não senti como minha, que não me sentia como componente, não me sentia como quarto-sala-banheiro-amor do lar. passei meu período com a dita parte do meu corpo sentado num banco de madeira não porque fora forçado. mas porque quisera. quisera eu, uma dia, sonhar em não ter sentado no banco de madeira, em ter posto a mão direita enfarinhada sobre ele, perceber que meu erro seria crer que minha vida se resumiria a música de bar, a música, à música. e nem tudo é música, nem tudo é som, nem tudo é como se vê, a velocidade da luz pode não ser relativa também e eu posso realmente não ter uma cabeça no lugar, assim como me avisam nas ruas por onde passo todos os dias para pôr primeiro meu pé esquerdo, posteriormente o direito, depois avançando-os simultaneamente até chegar a dois centímetros de distância de uma balcão feito de madeira de uma árvore que nada tinha a ver com a minha existência, até chegar e ver, ver os olhos de uma pessoa que não tinha olhos realmente, ver um espelho em mim mesmo, ver o espelho que me refletia por completo e revelava à minha persona número três que nem todas as vidas foram feitas para serem vividas como um ciclo repetitivo de ações quotidianas. e por que eu? essa era a minha grande questão. era, até eu perceber que a vida não se resume a isso.
ouviu, márcio? a vida não se resume a isso.
e eu só queria estar perto de ti quando ouvires a minha voz projetada por um aparelho moderno, só queria estar perto, ver-te, sentir-te, tocar-te com as minhas mãos que serão sempre ensangüentadas pelo calor do verão, posto que sou fraco perto de ti e diante de um verão tão quente. e eu só queria mesmo era te abraçar, sentir tua pele e teu casaco vermelho fundirem-se à minha pele. mas não posso. eu não posso me obrigar a mais isso, eu não posso mais fingir que estou vivo aqui. por isso, deixo-te um adeus, mas não como uma espécie de adeus humano. deixo-te um adeus divino, mergulhado em vinho e divido em pão por aqueles que crêem que a vida pode ser boa, apesar de todas as mentiras e pressões exercidas pelas vozes de homens que se dizem em maior contato com uma pequena partícula de vento que nos criou quando sonhamos o nosso projeto de flor. é esse o meu adeus, para ti.
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