domingo, 17 de junho de 2012

o presente.

ele fez um café bem forte. aquilo era para ele como uma faca perfeitamente encaixada no vão inevitável que se fazia entre seus dois punhos cerrados. um café bem forte, bem amargo, porque cebola ele não comia. foi em 2010 quando lhe disseram não à cebola. não à cebola... que blasfêmia. mas ele continuou com a abstinência. café com pouco açúcar, porque diminuía cada vez mais, até conseguir tomá-lo sem açúcar. sem açúcar, sua vida sem açúcar. amarga como café, bem escura, uma transparência zero. ele como cidade ao pôr-do-sol, cidade que se resigna a seu lugar como cidade, como espaço, e não criação ou criatura. ele já não usava mais chapéu, já não escrevia mais cartas, já não se preocupava mais. seu tempo era como o de um relógio de bolso, escondido. seu rosto, sem espinhas. seu quarto, repleto de páginas numeradas, travesseiros de papel e uma só cadeira confortável. era sua poltrona, aquela que sempre quis ter em seus contos em que aparecia como alter-ego, segundo diziam os críticos. na parede, sua camiseta favorita com o dizer es demasiado para mi cabeza. não tinha mapas, não tinha rolos de papel. seus cadernos já estavam todos mofados e suas produções mais recentes faziam o sucesso esperado pela crítica e pela editora. mas ele só queria um pouco de paz. o que ele poderia fazer após aquilo? escrever qualquer texto, pôr seus demônios para fora em forma de palavra? e a pergunta nem era para quê? senão nada. ele já não respondia sequer seus próprios questionamentos. houve, inclusive, uma vez em que uma jornalista, sobrancelhas grossas e águas-marinhas presas onde suporiam-se os olhos, acenou-lhe do jardim, avançou até a janela e deu três toques sutis no vidro propositalmente grosso que os separava. era esperar demais que ela fosse carinhosamente receber um buquê de flores, de rosas brancas ou vermelhas, ou até mesmo um daqueles comprados em supermercados de última hora. pensando depois, ele não pôde crer como se deixou acreditar na ilusão que havia criado de que ela o receberia assim, tão desnudo de si mesmo, tão não-ele-como-ela. ele, por uma década, havia parado com suas personas e seus livros. contos, agora só contos. deixou até seu cabelo esbranquiçar. pôs aros novos, lentes que o fariam enxergá-la melhor. dedicou-lhe um conto de mais de trinta páginas, lançou um livro com seu nome e, naquele dia, iria reencontrar seu sorriso, iria cegar-se naqueles dentes tão brilhantes. se for amor eu cegue, escreveu na região entre as omoplatas de sua camiseta mais nova, cor azul pastel. para ele, seria como o céu chovendo pétalas. pelo contraste entre os dois, achou que o vermelho combinaria mais com o seu provável batom provocante. eu quero as vermelhas, disse à dona da loja, com o seu sorriso de velhinho mais composto do que dentadura alguma poderia fazer. a partir daquele instante, ele sentia que deixaria de ser velho. velhinho, só uma ilusão que se projetava no espelho. ele sabia que ia ser feliz, e que ser feliz era ser jovem, e que ser jovem era amar e que amar era, enfim, viver. mas, como dizer isso de forma delicada? o mas soa sempre tão perverso que nem dá a real tonalidade que a vida toma quando se vê tal coisa. para ele, seria mais fácil enxergar tudo preto, atirar os óculos ao chão e ter como verdade que o que não se viu nunca ocorreu de verdade. mas, e aquele mesmo mas, era tarde demais. demais para seus olhos de velho, velhinho. demais para seu coração que já não bombeava tanto sangue vermelho escuro como antes, que já bombeava como turbinas de um relógio empoeirado, grandes rodas que já foram pequenas e ágeis. o que ele poderia fazer? um buquê de flores rosas na mão direita, um de esperança na esquerda. quando arremessou ao lixo, não sabe ao certo se foi a direita que tomou a ação para si, não sabe se havia invertido os lados, não sabia sequer o que segurava. permitiu-se pensar em qualquer música que o preenchesse, que o explicasse, que o fizesse sofrer como num filme de amor no qual o mocinho se rende aos encantos da mocinha, mas, mesmo no dia do seu aniversário, ela resolve se mostrar vilã longe dos olhos dele e, como feitio do destino, ele vê sua silhueta verdadeira, um borrão. ele tentou dizer, tentou, que tudo não passou de um borrão, mas o seu primeiro passo foi em falso e ele só fez cair. cair na tentação de se humilhar frente a ela com a vaga ilusão de deixar bem claro que ela não valia a pena. mas não, ele tinha de ser forte, tinha de ter em seu coração fraco um resquício de sangue vermelho escuro e arrancou seu próximo passo já dentro de seu carro, no acelerador, num lugar bem longe dali, onde ele teria um conforto, uma xícara de café bem preto e amargo. quem sabe, assim, poria um pouco de açúcar em sua vida novamente.

Um comentário:

  1. seus textos mexem muito com aquela coisinha que fica la dentro da gente...

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