quinta-feira, 7 de junho de 2012

o que ele disse.

estava ali, onde sempre quis estar, numa varanda tropical, bebendo um dry martini ao lado de uma bela mulher, exatamente como nos filmes em que marilyn monroe estrelava. como um jake gyllenhaal em tempos de verão brilhante como ouro. com os cabelos escovados perfeitamente para trás, como se um vento gelado tivesse soprado com perfeição naquela manhã, um hálito fresco que o deixava assim, tão pronto para desfrutar de uma fantasia tornada realidade. como se tudo aquilo fosse, enfim, mais do que imaginação fértil de jovem fora do seu tempo que o passa assistindo filmes de outras décadas. porque não era com jake gyllenhaal que ele queria se parecer, mas com a sua imagem de protótipo de galã de hollywood que combinava tão bem com os seus sonhos, com os seus bem-sucedidos sonhos. mas o que lhe aguardava não era o encantador charme de uma mulher de vestido branco deitava ao seu lado maravilhosamente iluminada pelo brilho do sol. nem era o seu tão intra-dramático passeio pelas estreitas ruelas de roma ao som de alguma música mais introspectiva guiado pelo seu olhar misterioso e inquiridor. esperava-lhe, numa outra sala, a voz de uma mulher seca e dura, quadrada, esperando que ele andasse logo, pois o tempo passava rápido e isso significava dinheiro a ser perdido.
o que ele mais queria era pode transformar tudo aquilo em desrrealidade de um futuro que ele nunca imaginou. certo, imaginar, ele havia imaginado. mas não queria aceitar que um futuro se tornasse tão hermético e previsível, tão duro e tão mesquinho, tão desolador e incomprometido. o que ele queria dizer era que tudo aquilo era simples descaso, descaso de que o real poderia ser de outra forma, porque ninguém realmente se importava com aquilo. e ele também, porque ele não fazia mais nada além de pensar e se questionar se tudo aquilo teria um propósito, se os sonhos existem para se tornarem reais ou apenas torturar-nos, se as pessoas que a gente conhece valem realmente a pena e, enfim, para que serve tudo isso.
sempre era mais fácil voltar às idealizações de uma varanda quente, de uma mulher encantadora vestida de branco, de um livro de poesias sutis e de um pôr-do-sol indescritível. e tudo aquilo poderia ser alcançado com um gole de café. mas, será possível que apenas um gole de café possa trazer toda essa "experiência de vida" para alguém que nem sonha em tirar os pés do próprio continente? ou melhor, a questão é realmente fugir de onde se está, do que se é? mudar? mudar é fácil. basta vestir outras roupas, ganhar bastante dinheiro, falar diferente, mudar de telefone e não fazer mais cisnes com os papéis de alumínio que envelopam os sanduíches da hora do almoço. isso tudo é bem simples de se fazer se houver a mínima vontade. mas, para ele, a questão não era essa - ter a vontade -, mas haver o desejo ou, no mínimo, a necessidade e a razão disso tudo. para quê mudar o que foi construído de mim - ou o que ainda não foi, já que quase vinte anos de vida não é quase nada, porque é quase -?
seu envolvimento com a terra, num sentido figurativo, ia muito mais além do que explicações astrológicas do momento do seu nascimento. era muito mais do que pó das estrelas, mesmo que não passasse disso, no fundo. no fundo, tudo é mais profundo do que a gente pensa e, mesmo assim, tão raso que a gente se afoga por buscar sempre o fundo do poço. por que a gente sempre olha para o fundo do oceano se a luz vem de cima?, perguntava-se ele, de vez em quando. em outras, invertia a sentença e, mesmo assim, não respondia à sua própria pergunta. no fim, achava que suas perguntas retóricas só deixavam ele para trás, mesmo que não acreditasse que houvesse, realmente, um caminho a ser percorrido.
sua vida ainda era muito sem sentido, mesmo com todas as filosofações desde quando começou a escrever poemas. sentia-se mais confortável em entender que tudo aquilo não passava de destino, mesmo que não acreditasse de verdade em toda essa baboseira que as pessoas chamam de sentido. o cosmos, a alegria, o caos: para ele, eram sinônimos da mesma coisa, coisa que a gente inventa mil palavras para dizer uma coisa só, mas em situações diferentes. e ele não entendia muito bem isso, porque achava que se eu dissesse, sim, eu, nos meus dezenove anos, que tudo não passava de alegria repentina, era a mesma coisa que jake gyllenhaal dizer que sua vida era um caos. e, mesmo que eu não entendesse de verdade, eu entendia, e dizia que tinha entendido, mesmo que ele soubesse que não fosse verdade, e ele me abraçava mesmo assim, fingindo que eu estava sentindo um caos repentino e precisasse de um abraço para acalmar, para esvanecer uma alegria passageira que não é própria do meu eu. sim, ele me entendia, mesmo que eu não concordasse com isso.
e ele tinha esses sonhos quentes de verão, e vivia numa cidade mais fria do que eu. não, não de clima meteorológico. eu sentia uma metodologia do viver em suas mãos quentes quando ele acordava de manhã, calmo, depois de ter se remexido horrores durante a noite. e eu dizia isso a ele, quase como um bom-dia que as pessoas dão sem sorrir nos saguões do hotéis e dentro dos elevadores das grandes corporativas para as quais nós, ambos, trabalhávamos sem nos questionar até que ponto poderíamos fingir que estava tudo bem.
eu não sonhava com ele, e ele não sonhava comigo. não dormíamos na mesma cama e, mesmo assim, nos sentíamos como um casal. não partilhávamos exatamente como haviam sido nossos dias, não trocávamos palavras de boa-noite e, mesmo assim, nos sentíamos como um casal, principalmente porque, impreterivelmente, jantávamos juntos e escovávamos os dentes juntos e dormíamos no mesmo quarto, duas camas de solteiro, sempre com os lençóis azuis, as fronhas brancas e os chinelos. as meias de dormir, o mesmo relógio para despertar, a mesma rotina, mesmo que não soubéssemos exatamente o que fazíamos ali, naqueles grandes prédios como os de tokyo. no fundo, não sabíamos sequer se queríamos afirmar, de fato, e aceitar que éramos assim ou não o éramos, enfim.
mas, estranhamente, um dia ele me fez sentar na poltrona nove minutos depois do jantar, depois de ter sido a minha vez de lavar os pratos, de ele ter guardado todo o resto da comida para o almoço do dia seguinte e ter arrumado a mesa para o café da manhã, de eu ter desligado a televisão que nunca realmente assistíamos, mas deixávamos ligada para não levantar suspeitas nos vizinhos de que não éramos normais e escrevíamos poemas e romances antes de dormir, de que não fazíamos barulho enquanto comíamos, de que admirávamos o olhar de bette davis antes do jantar. ele me fez sentar, trouxe-me um copo de água e deixou do lado uma fina rodela de limão, o mais fina que pôde. ele ajoelhou-se, depois se sentou ali mesmo, no carpete que limpávamos a cada semana, e respirou fundo. ele parecia nervoso, e eu também, mas eu não pude transparecer isso. o único sentimento que consegui transmitir foi a grande interrogação que tinha se instalado bem no meio dos meus olhos, ocupando esse espaço entre os olhos e as sobrancelhas, acima do nariz, que deve ter algum nome científico complicado e útil somente nessas horas em que a gente não sabe pelo que esperar, mas quer ouvir o derradeiro depoimento de uma pessoa que se senta à nossa frente e respira fundo antes de balbuciar uma coisa que... eu não ouvi o que ele disse. ele disse alguma coisa? eu não me lembro. eu ouvi alguma coisa sair da boca dele? ele realmente disse alguma coisa? você...?
- você já deve saber disso há bastante tempo... e-eu...
- você?
- sim, eu. e-eu queria... queria te dizer que...
- queria me dizer que...
- que...
- que...
- que você... você é... é...
- que eu sou... o que eu sou? por favor, diz pra mim o que eu sou.
- que eu não... que eu não sei...
- você não sabe quem eu sou? é isso?
- não! er... eu queria dizer que eu não sei quem eu sou. não! eu queria dizer...
- você não sabe o que quer dizer.
ele desinflou, constatando exatamente o que eu tinha concluído. o sol já havia se posto e estávamos nós dois ali, sozinhos numa sala que eu não havia redecorado porque falta-me o tempo e a paciência, mas na qual ele havia dedicado dois finais de semana incansáveis no mesmo período em que tinha um relatório sobre a questão atual do mercado para entregar em um mês. só nós dois, as cortinas fechadas, a única janela aberta e ele não conseguia se expressar porque o vento atrapalhava nossa memória. eu fiz que ia me levantar, mas ele me segurou pela perna. quem se levantou foi ele. fechou a janela, pegou uma das duas cadeiras da mesa de jantar, posicionou-a a exatos trinta centímetros de mim e sentou-se. uma régua nos separa foi a coisa mais poética e mais estúpida na qual eu consegui pensar por um minuto durante toda a minha vida. mas, antes de eu completar esse pensamento, ele abriu a boca mais uma vez.
- olha... eu tava dizendo que... eu... queria... que...
dessa vez eu não interrompi. eu não conseguia pensar em mais nada. fiquei apenas a espera da sua conclusão, da sua frase, da sua palavra final. como ele conseguia ter tanta calma para se levantar e ligar o rádio num momento tão crucial? eu não o entendia completamente. eu pensava que sim, pensava que seu sonho era estar ao lado de uma mulher iluminada pelo pôr-do-sol num cruzeiro a caminho de alguma ilha do pacífico sul, algum paraíso deserto de gente e repleto daquilo que todos nós procuramos, fingimos que procuramos ou procuramos acreditar que temos de procurar. pensava que ele adorava a combinação de shorts brancos com camisas azuis, que gostava realmente de seus pais, apesar de tudo, que detestava seu país, mas que não o deixaria por nada, e, mais do que tudo, que sabia exatamente do que falava. mas não. assim como o copo que eu segurava, depois dele terminar sua frase, aquele vidro fino de uma imagem de perfeição que a gente cria dos outros para nós mesmo se quebrou em pedaços que eu, sinceramente, não me ative a contar, porque, sinceramente, não era a coisa a se fazer, nem certa nem errada, mas simplesmente não era. eu poderia estar negando a minha natureza literalmente calculista, a minha fascinação pelos casos ocultos e inexplicáveis, da minha estranheza maluca e minha quase obsessão por coincidências e incidentes sem explicação, mas, de fato, aquele não era mais eu. não depois daquelas palavras. não depois de.

2 comentários:

  1. meu deus. tudo o que voce escreve mexe muito comigo, la no fundo...

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    1. como eu não sei muito bem como responder isso além de um obrigado, digo que eu sinto muita falta de ler seus textos. meus ombros se abaixaram num suspiro quando os vi fora do ar (desculpa a poesia toda, mas quando a gente acaba de escrever alguma coisa, acho que fica um pouco impregnado na gente um resto de pó de poesia, por mais brega que eu possa achar isso daqui a alguns dias).

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